domingo, 3 de agosto de 2008

O peso da História

Esquecimento é fundamental para deixar o peso da História diminuir, já dizia Nietzsche.
Humanos= melancolia, depressão, lembranças. Não conseguimos viver o instante.
O peso da história é tão grande que se torna febril. Às vezes, a história de que tanto nos orgulhamos pode ser sinal de nossa doença.
O animal vive o instante, o átimo, o presente. Deveria, eu , então, assumir atitudes animalescas?

_Não sei, só sei que a história tem que estar a serviço da vida, e não o contrário. A preocupação com a história não pode se tornar sufocante.
Preciso ter um encontro amoroso com o presente. Pois, a cada momento que eu encontrá-lo, de boa vontade, poderei reconfigurar o passado.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Fotografias

Vendo em velhas fotos meu rosto onde não estás,
a face em que estás como dor, esquecimento,
penso em quê estarão fazendo na China agora
com tanta tristeza como a que caía em mim, ou
crescerá como outro outono humano
cheio de ouros, de doçura,
com um fogo no meio como teu nome , ou seja
crepitarás entre os lotus de Hangchaw debaixo de setembro
como quando encontrei a justiça no mundo
e era como teu rosto,
melhor dizendo: te amo.

Juan Gelman

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Devolvam-me o que não é meu!
Eu pedi ao vento!
A gravidade talvez te traga de volta.
O vento traz....

Quanto é necessário para ser/ter,
um pouco do quanto tu és ?
Sou o quanto me destes.
Possuo 1/3 de mim,
e preciso dos meus 3/3.

Se aproxime do que eu digo,
das minhas res-postas,
elas possuem múltiplas maçanetas.
Habite em todo e qualquer mar
mas, retorne aqui,
do lado esquerdo,
na minha memória.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

O Amor


O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.



Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer


Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!


Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!


Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...


Fernando pessoa

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Sem a alma o corpo é inerte,
Não há corpo sem alma,
Qualquer corpo sentiria a ausência de uma alma.
Ora, a alma não seria o famigerado coração?
Alma e coração?
Seria o real e o virtual, não respectivamente falando,
do nosso sensível cerne anatômico, e que nos proporcionam
os sentidos mais importantes. Sentidos esses, que através de
nossos sensores produzem uma desordem do sentir.
Nessa relação entre real e virtual, ou alma e coração,
é só ele que tem o antídoto para essa conduta nociva;
para esse vício de insistir nessa saudade que eu sinto
do que eu ainda não vi, nem vivi.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Arte Poética

Mirar o rio, que é de tempo e água,
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
e que os rostos passam como a água.


E sentir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar, sentir que a morte,
que a nossa carne teme, essa mesma morte
de cada noite, que se chama sonho.


E ver no dia ou ver no ano um símbolo
desses dias do homem, de seus anos,
e converter a afronta desses anos
em uma música, um rumor e um símbolo.


E ver na morte o sonho, e ver no acaso
uma triste riqueza, assim é a poesia,
que é imortal e pobre. A poesia
retorna como a aurora e o acaso.


Às vezes, pelas tardes, uma face
nos observa do fundo de um espelho;
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nossa própria face.


Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao avistar sua Ítaca
humilde e verde. A arte é essa Ítaca
de um eterno verde, e não de prodígios.


Também é como o rio interminável
que passa e fica e que é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante , que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.


Jorge Luis Borges

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Soneto

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo mundo é composto de mudança
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, em mim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía."

Camões. Para tão longo amor tão curta a vida: sonetos e outras rimas
Da Timidez

Ser um tímido notório é uma contradição. O tímido tem horror a ser notado, quanto mais a ser notório. Se ficou notório por ser tímido, então tem que se explicar. Afinal, que retumbante timidez é essa, que atrai tanta atenção? Se ficou notório apesar de ser tímido, talvez estivesse se enganando junto com os outros e sua timidez seja apenas um estratagema para ser notado. Tão secreto que nem ele sabe. É como no paradoxo psicanalítico, só alguém que se acha muito superior procura o analista para tratar um complexo de inferioridade, porque só ele acha que se sentir inferior é doença.

Todo mundo é tímido, os que parecem mais tímidos são apenas os mais salientes. Defendo a tese de que ninguém é mais tímido do que o extrovertido. O extrovertido faz questão de chamar atenção para sua extroversão, assim ninguém descobre sua timidez. Já no notoriamente tímido a timidez que usa para disfarçar sua extroversão tem o tamanho de um carro alegórico. Daqueles que sempre quebram na concentração. Segundo minha tese, dentro de cada Elke Maravilha existe um tímido tentando se esconder e dentro de cada tímido existe um exibido gritando "Não me olhem! Não me olhem!" só para chamar a atenção.

O tímido nunca tem a menor dúvida de que, quando entra numa sala, todas as atenções se voltam para ele e para sua timidez espetacular. Se cochicham, é sobre ele. Se riem, é dele. Mentalmente, o tímido nunca entra num lugar. Explode no lugar, mesmo que chegue com a maciez estudada de uma noviça. Para o tímido, não apenas todo mundo mas o próprio destino não pensa em outra coisa a não ser nele e no que pode fazer para embaraçá-lo.

O tímido vive acossado pela catástrofe possível. Vai tropeçar e cair e levar junto a anfitriã. Vai ser acusado do que não fez, vai descobrir que estava com a braguilha aberta o tempo todo. E tem certeza de que cedo ou tarde vai acontecer o que o tímido mais teme, o que tira o seu sono e apavora os seus dias: alguém vai lhe passar a palavra.

O tímido tenta se convencer de que só tem problemas com multidões, mas isto não é vantagem. Para o tímido, duas pessoas são urna multidão. Quando não consegue escapar e se vê diante de uma platéia, o tímido não pensa nos membros da platéia como indivíduos. Multiplica-os por quatro, pois cada indivíduo tem dois olhos e dois ouvidos. Quatro vias, portanto, para receber suas gafes. Não adianta pedir para a platéia fechar os olhos, ou tapar um olho e um ouvido para cortar o desconforto do tímido pela metade. Nada adianta. O tímido, em suma, é uma pessoa convencida de que é o centro do Universo, e que seu vexame ainda será lembrado quando as estrelas virarem pó.

Luis Fernando Veríssimo